¤ Relato do nascimento de Beatriz filha de Helena e Carlos

Querida Beatriz,
 
Nos intervalos das mamadas, enquanto você dorme no carrinho ou no colo da sua avó, passeia de sling com seu pai ou qualquer outra coisa, aproveito para te contar como você nasceu. Quando você irá ler esse relato, ainda não sei, mas ele estará aqui. Seu parto foi mais ou menos assim. “Mais ou menos” porque ele jamais será recapturado por minhas palavras. Elas só me permitem reconstruí-lo através de minhas memórias e, quando você lê-lo, você também irá reconstruí-lo, do seu jeito.
A data provável prevista para seu nascimento fora calculada para o dia 11 de junho. No dia 8, acordei achando graça do sonho que tivera aquela noite. Sonhara que minha obstetra teria dito que, se eu queria que você nascesse, não deveria comer mamão! Rindo, contei o sonho ao Carlos e, por via das dúvidas, naquela manhã, diferentemente de todas as outras, não comi mamão no café da manhã!

 
Nesse mesmo dia, fiz minha última aula de yoga e, à tarde, encontrei com uma professora na Unicamp. Era o último compromisso que tinha antes do seu nascimento. Naquela noite, ainda compramos as últimas coisas que queríamos. Após várias procuras, finalmente achamos um abajur para teu quarto. Seria para iluminar o seu caminho? Ou para eu dar a luz? Compramos ainda mel, frutas secas, conchas para amamentação e um mordedor! Idéia do seu pai, que, temendo ser mordido no meio de uma forte contração, teve a idéia de comprar um mordedor usado por lutadores de boxe para alguma eventualidade! O vendedor da loja perguntou-lhe se ele também não queria levar luvas, ao que respondeu negativamente, dizendo que, na verdade, o mordedor era para mim! O rapaz me olhou, deparou-se com uma imensa barriga, e não entendeu nada do que estava acontecendo!

 
Esses últimos preparativos e “não comer mamão” pareciam fechar um ciclo, para permitir que outro iniciasse. Era como se finalmente tudo estivesse realmente pronto para recebê-la.

 
No dia seguinte, tínhamos consulta com a médica e eu estava curiosa para saber se ela teria algo a me dizer. Eu procurava controlar minha ansiedade, pois, à medida que a data provável do parto se aproximava, eu temia que ela passasse sem você nascer e a médica querer induzir um parto. Até então, tudo estava “sob controle”. Eu sentia poucas contrações, bastante esporádicas e fracas. Nenhum indicativo da sua chegada. Naquela noite, porém, quando voltamos para casa, senti uma única contração mais forte, enquanto preparava algo para a janta.

 
Ficamos assistindo o triste jogo da seleção brasileira de futebol contra a Argentina. Deitei no sofá e cochilei em vários momentos, aliás, só assisti aos gols argentinos nos replays! Melhor assim! Fomos dormir era quase meia noite e, lá pelas 2h30, acordei para ir ao banheiro. Logo que levantei senti um pouquinho de líquido escorrendo entre as pernas e pensei: “Será? Mas poderia ser um pouco de xixi.” Quando voltei para a cama começou a escorrer mais água e tive certeza de que era a bolsa que se rompera. Acordei o Carlos, conversamos um pouco, peguei uma toalha e voltamos a deitar. Queria aproveitar para descansar um pouco, mas logo, logo comecei a sentir contrações. Tentava relaxar nos intervalos para poupar energia, mas as contrações já estavam por demais freqüentes e resolvi contar os intervalos, caminhar um pouco, sentar na bola ou qualquer outra coisa. Levantei e o Carlos ficou dormindo, como ele disse depois, guardando forças para mais tarde.

 
Andei pela casa, coloquei mais alguma coisa na mala para o hospital, escrevi um e-mail para seus avós, tias e madrinhas: “Beatriz está querendo nascer! Daremos notícias!” De vez em quando anotava num papel os intervalos das contrações, que variavam entre 3 e 6 minutos. O tempo passava muito rápido. Ouvi um dos CDs de música que eu gravara para escutar durante o trabalho de parto, rebolei na bola, caminhei pelo quintal com a Odara – nossa cachorra – vi o dia amanhecer, embalei-me na cadeira de balanço... Seu pai dormindo e eu tranqüila, lidando bem com as contrações, curtindo sua chegada. Liguei para a Lucía e depois para a Gabriela. Esta me pediu que eu voltasse a ligar por volta de 7 horas, quando quis que nos encontrássemos no hospital para me examinar. Já eram 7h30, Carlos estava levantando da cama, e marcamos de nos encontrar às 9 horas. Tomei um chá de maçã com torradas e fui para o chuveiro com a bola enquanto o Carlos se preparava e cuidava de encaixar no carro nosso extenso “kit parto”.

 
Há julgar pela bagagem, parecia que partíamos numa longa viagem. E não seria isso de fato? Mala, bola, almofadas, travesseiros, aparelho de som, CDs, lanchinho, cadeirinha, almofadas térmicas e talvez mais alguma coisa que eu não lembre agora. Fui deitada de lado no banco de trás, segurando uma bolsa de água quente em baixo, na barriga. Desde que as contrações começaram e até o final, ao contrário do que eu imaginara, nunca senti dor alguma nas costas, apenas no baixo ventre. As massagens na lombar que tínhamos imaginado para aliviar a dor, não foram utilizadas.
Cida, nossa vizinha, veio aqui, ajudou-nos a partir, fechou a casa e ficou com a chave para cuidar da nossa cachorra. Ela estava contente e também emocionada com o momento. Antes de sairmos ainda disse: “Tomara que nasça cabeludinha!” Foi o que aconteceu!

 
No caminho até o hospital as contrações foram ficando mais doloridas. Eu mexia a perna tentando encontrar alguma outra posição. Algumas pessoas olhavam pela janela, achando a cena estranha. Fiquei imaginando o que não achariam se eu estivesse de quatro no banco!! 

 
No caminho, fizemos uma aposta sobre com quantos centímetros de dilatação eu estaria. Não lembro exatamente se apostamos 5 e 6 ou 4 e 5. Tanto faz, a questão é que quando a médica fez o primeiro exame de toque por volta de 9h30, eu estava com 3 centímetros e, segundo ela, as contrações estavam fracas. Decepcionada, não partilhava exatamente da mesma opinião, pois, após o exame de toque, senti que as contrações se intensificaram. Perguntou se queríamos voltar para casa ou já ficar no hospital. Carlos sugeriu que ficássemos, pois a Lucía já estava chegando e o caminho até em casa era um tanto quanto longo e desconfortável. Gabriela disse que me daria soro com ocitocina, pois a bolsa já rompera às 2h30 e o trabalho de parto precisava andar mais rápido, também para eu não ficar tão cansada.
Logo Lucía chegou. Levantei para falar com ela e me senti tonta. Voltei para a cama e comentei que estava com medo da ocitocina. Ela disse que poderíamos pedir para esperar um pouco, que ainda iríamos para o quarto. Ficou comigo enquanto o Carlos providenciava a internação. Logo veio uma enfermeira para me levar de cadeira de rodas para o quarto, a qual já fora oferecida na nossa chegada no hospital. Eu disse que queria ir caminhando, mas ela não deixou. Sentada, as contrações ficavam infinitamente mais insuportável e eu passei a me levantar sempre que elas vinham.

 
O quarto individual, ao qual tínhamos direito, não foi logo disponibilizado e colocaram-nos num quarto com uma outra gestante que se preparava para uma cesárea. Logo ela foi tranqüilamente levada a sala de cirurgia e o quarto ficou só nosso. Fiquei deitada de lado na cama, coberta com um cobertor, pois, apesar de estar relativamente quente, sentia frio. Certa hora quis ir ao banheiro e acabei vomitando. Ter simultâneas “contrações” na barriga e no estômago era uma experiência nem um pouco agradável, que ainda se repetiu outras duas vezes.

 
Um enfermeiro entrou com uma camisola e disse: “Helena, vamos então mudar de roupa e nos preparar para ir para a sala de parto?” Eu respondi: “Como assim? A Gabriela disse que iria me mandar um chá com açúcar?” Ele foi o primeiro a querer me levar para fazer uma cesariana. Algum tempo depois, a enfermeira que veio ouvir seu batimento cardíaco também. Após perguntar a que horas a bolsa se rompera, comentou: “Então hoje você vai fazer a cesárea!”. Um parto normal era um raro acontecimento no hospital! Ao longo de toda a nossa permanência ali, até o momento da alta, sentimos isso. Após seu nascimento, fui cumprimentada por várias enfermeiras: “Você que teve parto normal? E esse bebê tão grande? Sem epísio?” Quando deixamos o hospital, constava na sua carteirinha: “Tipo de parto: cesárea”! Ter um parto normal era o anormal e, por si só, uma vitória.

 
Mas, voltando ao quarto do hospital, Lucía ficou comigo enquanto o Carlos foi ao carro buscar nossos apetrechos. Alguém sugeriu que eu tomasse um banho. Gabriela também falou que seria bom eu caminhar, mas eu estava me sentindo muito fraca para isso. Foi feito mais um exame de toque e a dilatação subira para 5 cm. Não tenho idéia de que horas já eram, mas só então a enfermeira trouxe o tal soro com ocitocina. A Gabriela falou que em uma hora voltaria e que então meu bebê estaria nascendo. Certa hora ouvimos um bebê chorando e Lucía comentou que logo eu estaria ouvindo seu choro.
Carlos chegou no quarto contando que, ao passar pela portaria do hospital com aquela imensa bola, o porteiro lhe perguntou onde iria com aquilo. Respondeu: “É que meu filho é parente do Ronaldinho Gaúcho e já vai nascer jogando um bolão!”. Nas suas saídas e entradas, nunca mais precisou se identificar: “Ah, esse é o cara da bola!”

 
Colocamos a bola sobre a cama, com um travesseiro em cima. Fiquei de joelhos debruça sobre ela e quando as contrações vinham, estendia um pouco as pernas e ficava me balançando, movimentando o quadril de um lado para o outro. As dores ficavam cada vez mais intensas. Os intervalos, mais e mais curtos, pareciam insignificantes. Lembro de ir ficando cansada e querer uma pausa para descansar. Nessa tentativa, em certo momento pedi para deitar de lado. As dores só pioraram e não obtive êxito no meu descanso. Voltei à posição original, na qual permaneci até ir para a sala de parto. A cada contração eu procurava relaxar e permitir que meu corpo se abrisse para sua passagem.

 
Minhas lembranças aparecem em flashes, sem que eu saiba a ordem exata dos fatos. Permanecia de olhos fechados, ouvindo uma música e as palavras carinhosas e de encorajamento do Carlos e da Lucía. Sentia seus carinhos em meio aquelas contrações tão intensas. Lembro-me da Lucía dizendo: “Isso que você está fazendo é ótimo, continua assim. Isso, continua gemendo. Deixa seu corpo se abrir...” Carlos fazia carinho no meu rosto. Num certo momento minha irmã Elisa ligou. Conversei com ela e lembro de ter lhe dito que estava doendo muito. Acho que ela ficou com dó de mim. Também lembro de pensar várias vezes: “Eu entendo essas mulheres que não encaram um parto normal e simplesmente marcam uma cesariana com antecedência.”
As contrações estavam muito fortes, e com elas a dor. Eu já não estava agüentando mais e disse: “Eu quero anestesia.”. Gabriela não chegava e pedi que a chamassem, pois já não estava mais conseguindo relaxar nas contrações. Já começava a sentir uma vontade de fazer força. Lembro de ter visto as horas no meu relógio ao lado da cama e estar marcando 12:30.Quando Carlos estava ligando para ela, ela entrou pela porta. Veio fazer novo exame de toque e quando viu que eu tinha sangrado, comentou que isso era um bom sinal. 9 cm de dilatação! Lucía repetiu com uma voz animada, “9 cm!” Fiquei feliz também. 

 
Trouxeram uma maca e me levaram correndo pelos corredores até a sala de parto. Antes de sair, Lucía ainda me disse: “Não pára de gemer”. Eu de olhos fechados, sentindo ainda mais dor naquela posição deitada. Os gemidos transformaram-se em gritos. Entrei sozinha na sala, o Carlos e a Lucía só puderam entrar depois. Sentia a falta deles. A luz da sala era fortíssima e eu continuava de olhos fechados. Gabriela ficou preocupada que eu fosse dormir e disse-me umas duas vezes: “Agora você não pode dormir, agora é hora de fazer força!” O anestesista me fez perguntas desagradáveis do tipo: “Você é alérgica a algum medicamento?”. Ficaram esperando um intervalo entre contrações, mas isso parecia não existir mais, então fizeram a anestesia assim mesmo e eu nem senti a agulha. 

 
Perguntei pelo Carlos, disseram-me que ele logo entraria. Eles chegaram e lembro que tudo foi muito rápido. Gabriela disse que já estava vendo sua cabeça. Minha sensação era de que a anestesia não me tirara totalmente a dor. Eu deixara de sentir as contrações, o que tirara-me a tal vontade de fazer força e a percepção do momento de fazê-la. Porém sentia uma pressão imensa na vagina, o que eu identificava com “dor”, apesar de terem me dito depois que não poderia ser “dor”. Tanto faz. Custei um pouco a conseguir fazer a força correta no momento certo. A força precisava ser mais longa, não poderia soltá-la junto com a expiração do ar e precisava ser concomitante às contrações. Sem isso, você começava a sair e voltava. O Carlos passou para o outro lado para ver a sua chegada. Fiquei emocionada quando ele me disse que já estava vendo seu cabelinho e aquilo me deu nova energia. Gabriela disse que eu precisava fazer força, que você não poderia ficar muito tempo naquela posição. A Lucía colocou a mão na minha barriga e ajudou-me a perceber a chegada das contrações. Levantaram meu tronco, e, ao som da torcida, comecei a fazer força, muita força, muita mesmo. Carlos narrava que você estava nascendo, para eu não parar. Outras vozes me incentivavam e eu continuava fazendo muita força. Não podia soltar o ar, mas precisava de mais ar, então fazia respirações curtinhas e continuava a fazer força. A sua cabeça passou e depois ter corpo deslizou para fora. Eram 13h56 do dia 9 de junho de 2005. Você pesava 3,725 kg e media 50 cm.

 
Gabriela te segurou nos braços e rapidamente cortou seu cordão umbilical. Você foi dada para a pediatra e não para mim. Eu queria sentir seu corpo nos meus braços, mas não me deixaram. Esta é, para mim, a única coisa que gostaria ter sido diferente no teu nascimento: ter podido sentir teu corpo molhado junto do meu depois de todo o trabalho que enfrentamos juntas. Levaram-te para a sala ao lado, para fazer aqueles procedimentos não muito delicados com uma recém nascida. Finalmente ouvimos seu choro e o Carlos e eu nos abraçamos, choramos de alegria, de emoção e de não sei dizer mais o que. Depois perguntei a ele se não queria ir ficar contigo e Lucía ficou ao meu lado. Levaram um tempo para me trazê-la e novamente não me deixaram pegá-la. Você estava envolta em panos azuis e só vi seu belo rostinho, que acariciei com meu dedo. Pedi para pegá-la, mas a pediatra disse que você estava “cansadinha”, precisava descansar e que depois me levariam você no quarto para mamar. 

 
Segundo os critério médicos, o melhor para você naquele momento eram os cuidados pediátricos e o calor da encubadora. Não sei se concordo. Segundo os nossos, queria de dar o calor do meu corpo.
O teste da Apgar registrou notas 8 e 9. Supostamente, segundo a médica, você teria ficado muito tempo dentro do canal vaginal até nascer e por isso teria nascido “molinha”. Não sei. Parece-me também que aquele foi um procedimento médico padrão, de uma pediatra que até hoje não sei quem é, que tem concepções distintas das nossas sobre um nascimento e com quem não pudemos negociar nossos desejos.

 
Já desde bem antes desse dia, sabíamos que a opção por um parto hospitalar, em Campinas, nos dava segurança, mas também nos impunha limites. Enquanto nos preparávamos para o parto, nos deparávamos com essas questões. Uma delas, por exemplo, referia-se a posição do parto. Sabíamos dos problemas da posição deitada e das vantagens de uma posição de cócoras ou então deitada de lado. Conversávamos com a Lucía, negociávamos com a médica e sabíamos o quanto uma posição alternativa seria difícil dentro de um hospital tradicional. Ainda que a Gabriela, ao final, tenha dito que poderia fazer o parto de cócoras ou de lado, isso estava condicionado a não fazer uso da anestesia e também exigiria de mim uma atitude decidida e “combatente” no momento do parto. Quando chegou o momento de você nascer, eu estava me sentindo tão cansada que não queria perder minhas forças negociando com o hospital. Hoje, após ter tido um período expulsivo tão rápido, penso que talvez pudesse não ter pedido anestesia e ter lutado para você nascer de outra forma. Mas eu achava que tudo ainda ia demorar mais tempo. Agora, penso que, se fiquei sem anestesia até 9 cm de dilatação, poderia ter ficado também durante o expulsivo. Mas isso são suposições inúteis, pois não se sabe o que teria acontecido se o rumo tivesse sido outro. Isso é o que penso agora e não o que quis naquele momento. Não posso olhar para traz a partir de um padrão idealizado de parto, mas vê-lo na sua beleza como o resultado do que quis e do que foi possível naquela hora.

 
Sinto-me feliz de ter dito uma gravidez tão tranqüila e tão prazerosa, de ter curtido tanto você dentro da minha barriga durante 9 meses. Feliz por você ter nascido do meu amor com o Carlos, com quem reparti essa experiência tão singular e prazerosa, com quem construí o parto que queríamos. Feliz por ter encontrado a Lucía, com quem aprendemos tantas coisas, e por ter sido acompanhada por ela nesse momento tão bonito. Feliz por a Gabriela, num universo de cesáreas, ter nos proporcionado um parto normal e sem episiotomia. Feliz com o meu corpo, durante e após a gravidez. Feliz pela sua saúde e beleza, por poder lhe ter nos meus braços, por lhe dar de mamar e ver “que toda gente precisa não ter cabimento para crescer”. Feliz porque termino esse relato comemorando seu um mês de vida. Parabéns!
Com muito amor, da sua mãe, Helena.

P.S.: O mordedor não foi utilizado! 


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